Basta! A luta da Espanha para limitar a especulação imobiliária

Este artigo é parte de um simpósio escrito organizado pela Rede Global de Advogados de Movimentos Sociais e Movement Law Lab em colaboração com o LPE Project. Ele surge do nosso simpósio presencial realizado no Rio de Janeiro em julho de 2024.


Por Miguel Ruiz - advogado especializado em direito de moradia e direito internacional no Observatori DESCA

Com slogans como As Ilhas Canárias têm um limite”,Chega! Vamos impor limites ao turismo”, ou ”Acabou! Vamos reduzir os aluguéis”, as mobilizações em massa se espalharam recentemente por toda a Espanha. Os movimentos são uma reação contra a exploração excessiva do território, a especulação imobiliária alimentada pelo capital internacional e os efeitos da extrema turistificação.

Eles clamam contra o apetite ilimitado do mercado global; vinculam a depredação de moradias, cidades e territórios à degradação ambiental; e exigem medidas para proteger a dignidade e os ecossistemas das comunidades afetadas. 

Nesta breve postagem, perguntamos sobre o papel da advocacia popular/ de movimentos sociais e dos movimentos sociais na tensão entre um direito que corrói e sacrifica os ecossistemas e a dignidade em nome do progresso, por um lado, e um direito que busca resistir e defender a função social da moradia, o valor intrínseco da natureza e a necessidade de estabelecer limites ao poder do mercado. Tudo isso em um contexto de crescente autoritarismo que busca eliminar qualquer resistência para levar o crescimento econômico à beira do abismo eco-social. 

Uma crise habitacional crônica 

Esses protestos não são os primeiros do gênero, nem surgiram espontaneamente. Pelo contrário, eles são uma resposta ao crescente descontentamento dos últimos quinze anos, durante os quais a Espanha passou por uma crise habitacional crônica. As duas milhões de pessoas despejadas de suas casas desde 2008 são o resultado de causas profundas, históricas e inter-relacionadas. As mais recentes são a financeirização da moradia e o alinhamento do governo espanhol com o setor predatório de fundos abutres, reduzindo os direitos da população inquilina, concedendo isenções fiscais a fundos de investimento e permitindo que o investimento internacional alimente uma bolha financeira no mercado de aluguéis. Esse alinhamento ajuda a explicar por que o governo espanhol optou por desperdiçar uma oportunidade histórica de expandir o estoque público de moradias sociais em 2012, quando o resgate bancário levou à criação de uma enorme agência imobiliária estatal e à privatização de centenas de milhares de casas, colocando de fato a moradia decente fora do alcance de grandes segmentos da sociedade.

A precariedade e a inquietação social geradas por essas políticas levaram à organização de uma série de movimentos sociais, como a Plataforma de Pessoas Afetadas por Hipotecas (PAH, 2009), as marés dos cidadãos e o “movimento dos indignados” (2011). No caso da PAH, sua defesa do direito à moradia envolveu a recuperação de práticas de resistência do passado, como a desobediência diante de despejos, a ocupação de casas vazias de propriedade de bancos e fundos abutres para realojar pessoas sem alternativas de moradia, e ações diretas não violentas, como ocupações de bancos ou escritórios públicos, que exigiam o cancelamento de dívidas, aluguéis sociais e limites à especulação. Posteriormente, surgiram outros movimentos, como os sindicatos de inquilinas, que reavivaram outras práticas históricas de resistência, como a greve de aluguel.

Do ponto de vista da advocacia popular/ de movimentos sociais, esses movimentos criaram assembleias e espaços para aprendizado coletivo, tomada de decisões e ação. Nesses fóruns, as questões jurídicas, estratégicas e sociais são debatidas, democratizando o conhecimento jurídico entre os afetados, sob o mantra de que “ninguém será melhor advogado do que você mesmo”. Além disso, esses espaços permitiram que as demandas coletivas fossem transformadas em instrumentos jurídicos, seja na forma de projetos de lei, iniciativas legislativas populares ou litígio estratégico.  

Essas mobilizações também foram cruciais para a adoção de várias medidas que, embora insuficientes, contribuíram para aliviar os piores efeitos da crise habitacional: a moratória sobre despejos hipotecários (2013-2028), a recuperação e a extensão moderada dos direitos da população inquilina (2018), a moratória sobre despejos durante a pandemia (2020) e sua extensão até dezembro de 2024, e o controle de aluguéis na Catalunha (2021, 2024).

Nesse sentido, desde Observatori DESCA, estamos cientes de que o direito é o reflexo de uma estrutura de poder neoliberal e de um substrato cultural que, como diria Pier Paolo Pasolini, bebe de um fascismo consumista e que, há algum tempo, tende ao autoritarismo e ao fascismo. Mas também sabemos que o direito é um território em disputa e uma disciplina viva, que, embora muitas vezes possibilite a opressão, também pode ser usado como uma ferramenta de emancipação se tiver o apoio da sociedade civil e da mobilização dos cidadãos. 

Por esse motivo, trabalhamos em conjunto com movimentos e organizações sociais, como a PAH, a Aliança contra a Pobreza Energética, o Sindicato das Inquilinas de Barcelona e a Assembleia de Bairros para o Decrescimento Turístico. Juntando-se a esses grupos, obtivemos várias vitórias importantes, como uma medida em Barcelona que exige que novas construções e grandes reformas destinem 30% das unidades a moradias acessíveis, bem como uma medida na Catalunha que obriga grandes proprietários a oferecer aluguel social obrigatório a pessoas em risco de exclusão residencial.

Promessas e perigos da lei

A última medida é um bom exemplo das dificuldades enfrentadas pelos movimentos sociais ao tentar usar a lei a serviço da dignidade humana: ela foi elaborada por um grupo de ativistas e advogados populares/ de movimentos sociais, obteve o apoio de mais de 140.000 cidadãos como uma iniciativa legislativa popular e foi aprovada pelo Parlamento Catalão em 2015. Desde então, no entanto, foi suspensa pelo Tribunal Constitucional (2016) até que a pressão dos cidadãos forçou o Estado a retirar seu recurso inicial (2019); em seguida, sua cobertura foi ampliada graças à mesma pressão (2019), uma modificação que foi declarada inconstitucional por motivos formais pelo Tribunal Constitucional (2021) e que, novamente ampliada (2022), acaba de ser declarada inconstitucional por invadir as competências do Governo Central. Essa “decisão antissocial” do Tribunal Constitucional remove a proteção de famílias vulneráveis, pressiona o governo catalão a oferecer a elas moradias alternativas e transfere a pressão para o governo central para aprovar o aluguel social obrigatório em nível nacional. 

Durante sua vigência, essa política beneficiou mais de 20.000 famílias e teria protegido muito mais se outros atores não tivessem atuado contra ela. Por exemplo, muitos proprietários de imóveis de grande porte simplesmente ignoraram a regra, apesar da imposição de multas de mais de 6 milhões de euros a 79 proprietários de imóveis de grande porte. Quanto aos tribunais, muitos decidiram que a obrigação de fornecer aluguel social não tinha efeito sobre o processo de despejo, dando as costas a uma lei existente que emanava diretamente dos cidadãos. Em resposta, foi o próprio movimento de moradia que desenvolveu e disseminou uma estratégia jurídica alternativa para virar o jogo: as pessoas em risco de despejo eram as que moviam ações civis contra os grandes proprietários. 

Tudo isso ressalta a tensão entre o direito à propriedade e a função social da moradia, entre os poderes constituídos e o poder constituinte dos cidadãos, entre um direito sacrificial e um direito que está tentando se libertar. Essas tensões são particularmente visíveis em um contexto no qual são necessárias mais medidas para combater fenômeno especulativos, como apartamentos turísticos, aluguéis temporários ou a compra e venda de moradias por não residentes em áreas de conflito

Por esse motivo, os diferentes movimentos e sindicatos pelo direito à moradia na Catalunha estão cientes da necessidade de compartilhar recursos e estratégias; e da importância de tecer alianças entre diferentes movimentos, como com os movimentos antirracista, feminista ou ambientalista, a fim de imaginar horizontes conjuntos. 

Conexões globais e pensamento utópico

Entretanto, em um mundo globalizado, as alianças nacionais nunca serão suficientes. É essencial desenvolver consciências e narrativas transnacionais capazes de conectar a destruição maciça de moradias em Gaza com os 15 milhões de pessoas que são despejadas de suas casas todos os anos em todo o mundo; compartilhar estratégias e lições aprendidas entre movimentos sociais pelo direito à moradia em diferentes continentes; e impor limites internacionais aos fundos de investimento que, impunemente e com a colaboração dos Estados, estão destruindo o estoque de moradias das principais cidades do mundo.  

Qualquer diálogo internacional sobre o direito à moradia e à terra inevitavelmente levará a outras conversas complexas, pois nossas possibilidades políticas serão limitadas pela legislação, pelas estruturas e pelas relações sociais existentes. No entanto, acredito que, como advogados populares/ de movimentos sociais, é importante construir diálogos internacionais que se afastem, pelo menos momentaneamente, do realismo vulgar e ousem explorar horizontes utópicos, como os sugeridos na Constituição da Terra, de Luigi Ferrajoli, que propõe medidas como o desarmamento dos Estados, a democratização das Nações Unidas e a eliminação das fronteiras. 

Dado nosso diagnóstico atual - o autoritarismo está crescendo, a especulação não tem limites e a humanidade está enfrentando um iminente “despejo da Terra” devido ao repetido desrespeito aos direitos da natureza - os movimentos sociais e os advogados populares/ de movimentos sociais devemos ser ousados e utópicos para construir uma cultura e um direito que protejam os limites impostos pela dignidade e pelos ecossistemas dos bairros, as cidades e os territórios. 

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