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Sete Perspectivas Sobre o Direito Internacional e a Libertação da Palestina

Esta post faz parte do simpósio escrito "Advocacia popular em tempos de autoritarismo crescente", uma colaboração entre a Rede Global de Advogados de Movimentos Sociais (coordenada pelo Movement Law Lab) e o Projeto LPE. É a consequência das discussões desenvolvidas no simpósio presencial que realizamos no Rio de Janeiro em julho de 2024.


Por: 

Rabea Eghbariah: candidato a SJD na Harvard Law School e advogado de direitos humanos na Adalah, Legal Center for Arab and Minority Rights em Israel.

Noura Erakat: advogada de direitos humanos e professora associada da Rutgers University, New Brunswick, no Departamento de Estudos Africanos e no Programa de Justiça Criminal.

Alaa Hajyahia: advogada palestina e graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Yale. Ela está concluindo seus estudos de doutorado em antropologia jurídica na Universidade de Cambridge.

Darryl Li: Professor associado de antropologia e membro associado da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago.

Aslı Ü. Bâli: Professora de Direito na Faculdade de Direito de Yale.

Diala Shamas: Advogada sênior do Center for Constitutional Rights.

Maha Abdallah: Candidata a doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Antuérpia.

Shahd Hammouri: Professora de Direito na Faculdade de Direito de Kent.


Em Culture and Imperialism (Cultura e Imperialismo), Edward Said postulou que o remédio para uma cultura que preserva e impulsiona o imperialismo é por meio dos contrapontos dos “imperializados” - povos pós-coloniais ou mesmo colonizados - que “carregam seu passado dentro de si: como cicatrizes de feridas humilhantes, como instigações de práticas diferentes, como visões potencialmente revisadas do passado que tendem a um novo futuro, como experiências urgentemente reinterpretáveis e redistribuíveis... [falando e agindo] em um território arrancado do império”. O mesmo acontece com o direito internacional, atormentado por padrões duplos que favorecem os poderosos, cujas raízes liberais ocidentais acomodam o colonialismo em curso e seus legados: à medida que a ordem jurídica internacional desmorona sob o peso de sua incapacidade de responder ao genocídio e à guerra brutais, devemos nos voltar para as ideias, narrativas e visões daqueles mais esmagados por suas contradições para traçar um caminho diferente.

Para nos ajudar nessa tarefa, pedimos a oito juristas internacionais, advogadas de direitos humanos e especialistas em Palestina que compartilhassem suas reflexões sobre o papel do direito internacional na luta pela libertação da Palestina. Como o direito internacional atrapalha essa causa atualmente? E como ele poderia ser usado - ou como deveria ser transformado - para contribuir para essa causa?

Rabea Eghbariah

Nossas atuais estruturas jurídicas internacionais não só não conseguiram mudar a realidade material do povo palestino, como também limitaram discursivamente nossa capacidade de identificar as causas fundamentais dessa realidade. O direito internacional está ancorado em um paradigma ultrapassado que leva em conta a divisão da Palestina e a brutalidade da Nakba de 1948, e a comunidade internacional raramente questiona a infraestrutura jurídica que possibilitou a Nakba no processo ruinoso de estabelecimento do Estado de Israel.

Como resultado, os debates jurídicos geralmente ofuscam a totalidade e a continuidade do status palestino. Tendemos a discutir, por exemplo, o genocídio em Gaza separadamente dos assentamentos israelenses na Cisjordânia, e a anexação de Jerusalém separadamente do direito palestino de retorno. Na melhor das hipóteses, agrupamos alguns desses debates sob os conceitos gerais de ocupação ilegal ou apartheid israelense, mas continuamos a evitar questões jurídicas cruciais sobre a divisão, a autodeterminação ou a Nakba de 1948. Com muita frequência, a aplicação dessas estruturas também contribui para excepcionalizar o tratamento dos refugiados palestinos de 1948 ou dos cidadãos palestinos de Israel em relação ao status geral do povo palestino. Mas precisamos entender que a ocupação israelense ilegal dos territórios de 1967, o genocídio em curso em Gaza, a negação do direito de retorno dos refugiados e as práticas israelenses de apartheid são manifestações de uma estrutura mais profunda com raízes na colonização sionista da Palestina.

Para avançar, o direito internacional deve reconhecer a experiência fundamental da perda palestina e chamá-la pelo seu nome: Nakba. O direito internacional também deve reconhecer que a Nakba nunca terminou, mas deu origem a um sistema brutal de dominação israelense: um “regime da Nakba” que praticou transferência forçada, conquista, anexação, ocupação, apartheid e genocídio em diferentes intervalos espaciais e temporais. Juntos, esses crimes formam uma totalidade que é maior do que a soma de suas partes.

Nakba é, portanto, o nome apropriado para os crimes contra a humanidade cometidos contra o povo palestino. Ela se baseia na violência fundamental do deslocamento em massa, estruturada por um sistema de fragmentação legal e orquestrada por um objetivo geral de negar a autodeterminação palestina na Palestina histórica. O caminho para a justiça na Palestina é longo e tumultuado, mas colocar em primeiro plano, teorizar e analisar a Nakba no direito internacional é um bom ponto de partida.

Noura Erakat e Alaa Hajyahia

Uma nação inteira é responsável”, declarou o presidente israelense Isaac Herzog após o ataque de 7 de outubro. A atribuição de responsabilidade coletiva por toda a Faixa de Gaza feita por Herzog encapsula o desenvolvimento contínuo da estratégia de longa data de Israel de borrar as linhas entre civis e combatentes palestinos, uma estratégia que reflete a recusa de Israel em reconhecer as guerras de libertação nacional regulamentadas pelos Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra de 1977. Esses protocolos reconhecem guerrilheiros como combatentes, definem civis em oposição a combatentes e exigem que os Estados assumam que as pessoas são civis em caso de dúvida. Israel, assim como os EUA, não ratificou os protocolos, insistindo que militantes não estatais são terroristas. Essa posição permite que Israel pratique lawfare, usando a lei como uma arma para alcançar suas ambições coloniais. Como advogados e acadêmicos do direito, devemos reconhecer que se trata de uma campanha para expandir a fronteira colonial, e a partir disso resistir ao lawfare nocivo de Israel.

No início dos anos 2000, quando a resistência armada palestina a Israel surgiu predominantemente dentro dos Territórios Palestinos, onde Israel tinha o controle efetivo, em oposição aos estados fronteiriços, os advogados militares de Israel descreveram esse conflito como um “conflito armado que não era uma guerra”. A nova categoria tinha o objetivo de ampliar o uso da força disponível para o Estado contra uma ameaça que era mais do que uma revolta popular, mas não chegava a ser uma guerra de libertação nacional. Cinco anos depois, após sua retirada unilateral de Gaza, Israel recorreu novamente à criação de novas categorias legais: Israel definiu Gaza como não independente nem ocupada, mas como uma “entidade hostil”. Em seguida, declarou guerra a Gaza, cujo povo, segundo Israel, não tinha o direito de revidar ou de ser soberano.

Nesse contexto, Israel estava encolhendo a categoria do que considerava um civil palestino, o que uma de nós (Noura Erakat) descreveu anteriormente como o “civil encolhido”. Isso foi feito por vários meios. Por exemplo, removeu as limitações de tempo dos participantes diretos das hostilidades. Em Public Committee Against Torture in Israel v. Government of Israel, a Suprema Corte israelense determinou que os palestinos envolvidos em conflitos armados mantêm um “papel de combate contínuo” e, portanto, podem ser alvos a qualquer momento, mesmo quando estão inativos e integrados a populações civis. 

Israel também reinterpretou o requisito de “proteção da força”. Nas leis da guerra, o princípio da proporcionalidade equilibra o dano civil causado ao inimigo com a vantagem militar obtida, o que inclui a proteção da força, ou seja, o número de forças armadas protegidas e salvas. A doutrina militar revisada de Israel sobre a proteção da força inverteu esse cálculo, de modo que as vidas dos civis inimigos - os palestinos - valem menos do que as vidas dos soldados israelenses. Israel defendeu essa posição argumentando que, como o Hamas forçou Israel a lutar em primeiro lugar, o Hamas é responsável por todas as baixas. Essa interpretação perversa da aplicação da proporcionalidade permite que Israel inflija mais baixas civis enquanto nominalmente adere à lei internacional.

Israel obscureceu ainda mais a distinção entre civis e combatentes em 2018 durante a Marcha do Retorno a Gaza, um protesto popular massivo contra o bloqueio israelense de Gaza e pelo direito de retorno dos refugiados palestinos, envolvendo entre 20.000 e 30.000 manifestantes que se reuniram semanalmente por quase oito semanas. Ao avaliar o uso de força letal pelo exército contra protestos civis (mais de 90% das vítimas foram baleadas acima da cintura quando não representavam ameaça a civis israelenses ou à infraestrutura militar), a Suprema Corte israelense caracterizou explicitamente essas manifestações como uma ferramenta do Hamas e seus ataques contra Israel. O tribunal afirmou que os civis que participavam dos protestos eram apenas exceções, recategorizando efetivamente um evento essencialmente civil como uma operação militar e, assim, concedendo aos militares israelenses ampla discrição para decidir quando usar força letal contra os manifestantes. Da mesma forma, em julho de 2023, Netanyahu justificou um ataque ao campo de refugiados de Jenin, que matou 12 palestinos e devastou a infraestrutura civil, incluindo estradas, serviços públicos, casas e hospitais, declarando-o um ato de autodefesa contra “pessoas que aniquilariam nosso país”, um enquadramento que potencialmente implica qualquer palestino.

Essas práticas demonstram a estratégia de lawfare de Israel para reduzir o status civil do povo palestino, que deve ser entendido no contexto de seu projeto geral de colonização. A manipulação de longa data das leis de guerra por parte de Israel para legitimar a violência tem como objetivo eliminar ou subjugar permanentemente a população palestina nativa, adquirir suas terras e estabelecer uma soberania incontestável. O ataque indiscriminado de Israel a Gaza desde outubro de 2023 representa, portanto, o ponto culminante de uma estratégia muito mais longa de imposição de punição coletiva em resposta à resistência coletiva.

Embora o direito internacional tenha frequentemente se mostrado um obstáculo à resistência ao colonialismo dos colonos israelenses e tenha sido moldado para refletir o interesse das potências mundiais dominantes, ele continua sendo um campo de batalha crucial para a resistência anticolonial. A luta jurídica existe em um contexto geopolítico no qual os EUA, a superpotência mundial, protege seu aliado, Israel, das consequências de suas ações. Como advogados e acadêmicos, devemos expor essas distorções legais, desafiar as posições legais que minam as proteções fundamentais e isolar os Estados que as promovem. Tratar a resistência palestina contra Israel como uma guerra de libertação nacional dentro do significado dos Protocolos Adicionais, apesar das objeções de Israel e dos EUA, é fundamental nesse caso. Isso não apenas derruba a insistência de Israel de que tem o direito de criar um novo direito onde não exista nenhum, mas também deixa claro que a Palestina é emblemática nas lutas dos povos colonizados e não excepcional. Essa visão pode ajudar a criar rachaduras na aliança imperialista e abrir espaços para estratégias mais emancipatórias dentro e fora da lei.

Darryl Li

No último ano, a resistência e a força palestinas geraram as condições para um renascimento da solidariedade em todo o mundo e mudaram os termos da contestação política nos estados imperialistas que armam e protegem o sionismo. O dever da advocacia anticolonial neste momento é ajudar a aguçar as contradições de uma ordem jurídica internacional que sabemos que é essencialmente injusta e manobrar em um terreno doutrinário e discursivo hostil de forma que possa fornecer apoio a outras frentes de luta. O recente parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça (CIJ), confirmando que o domínio sionista nos territórios ocupados em 1967 - aquelas geografias amputadas da Palestina conhecidas como “Cisjordânia” e “Faixa de Gaza” - viola a proibição do apartheid, poderia catalisar pedidos de sanções e esforços legais criativos para destituir Israel na Assembleia Geral da ONU ou expulsá-lo completamente da ONU.

Se me pedissem para citar uma ideia concreta nesse espírito de advocacia anticolonial, eu sugeriria organizar a revogação da infame Resolução 181 da Assembleia Geral da ONU, que, em 1947, aprovou a divisão da Palestina entre a maioria árabe nativa e um “Estado judeu” artificial, cuja população seria composta por quase metade de não judeus forçados a escolher entre a subjugação permanente ou o exílio. O movimento sionista citou a Resolução 181 como fonte de legitimidade para o estabelecimento do Estado de Israel e a tratou como base territorial para a limpeza étnica nos estágios iniciais da Nakba de 1948, deixando de lado aspectos que não lhe convinham, como o reconhecimento do compromisso com um Estado palestino. Esse padrão de invocação da divisão persiste até hoje (apesar de nunca ter sido implementada), pois a “solução de dois Estados” se tornou um mero “pensamento e oração” da política internacional: um álibi vazio e cínico para um status quo assassino.

A Resolução 181 foi o pecado original da ONU em relação ao povo palestino e sua revogação, embora improvável no curto prazo, ajudaria a desmistificar o compromisso central do sionismo com uma ideologia racial que privilegia qualquer pessoa no mundo que ela considere judia em detrimento dos próprios habitantes não judeus do país. A defesa desse objetivo também ajudaria a ampliar o debate sobre o parecer consultivo da CIJ para além de seu foco restrito no regime discriminatório nos territórios de 1967, deixando clara a necessidade de reconhecer e desmantelar o colonialismo em todo o território entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo.

Aslı Bâli

O direito internacional oferece tanto uma estrutura normativa quanto um conjunto de ferramentas para o avanço de projetos decoloniais, e é um recurso imperfeito em ambos aspectos. Como estrutura normativa, os estudiosos da tradição das Abordagens do Terceiro Mundo ao Direito Internacional (TWAIL) mostraram que “o direito internacional não pode ser entendido ou analisado sem sua relação mutuamente constitutiva com o império”. Como um conjunto de ferramentas, os acadêmicos mostraram que o direito internacional é profundamente limitado, tanto como uma questão epistêmica por seus profundos laços com o eurocentrismo, quanto na prática pelas enormes assimetrias de poder na ordem internacional e pela ausência de vontade política para aplicar as normas existentes de forma igualitária. Não é provável que uma mudança isolada na doutrina do direito internacional altere essa realidade geopolítica.

Em nenhum outro lugar essas limitações são mais evidentes do que no caso da Palestina, como Noura Erakat argumentou vigorosamente. Entretanto, o direito internacional também pode ser uma arma dos fracos, um meio de restringir os poderosos recorrendo às regras que ele pretende defender. Nesse contexto, permanece em aberto a questão de saber se os esforços para fazer valer o direito internacional existente por meio de casos ativos perante a Corte Internacional de Justiça(CIJ) e a Corte Penal Internacional (TPI) - e o Parecer Consultivo emitido pela CIJ neste verão - podem contribuir para a proteção dos direitos mais básicos dos palestinos, sem falar da luta pela libertação da Palestina. Na prática, a violência e a repressão israelenses negam sistematicamente aos palestinos o direito à vida e a todas as outras liberdades e proteções às quais eles têm direito como indivíduos. Subjacente a todas essas negações está a violação do direito coletivo de jure dos palestinos à autodeterminação. Mas, apesar de décadas de apoio ostensivo a uma “solução de dois Estados”, o direito internacional ofereceu pouca proteção tangível aos direitos jus cogens do povo palestino.

A doutrina do direito internacional geralmente desencoraja exercícios de autodeterminação que alterariam unilateralmente as fronteiras territoriais. E, é claro, os Estados raramente consentem em retirar seu controle de fato sobre o território para facilitar os direitos de autodeterminação de outros, mesmo quando são legalmente obrigados a fazê-lo. Desde o Mandato de Partição da Palestina supervisionado pela ONU, que estabeleceu um Estado israelense e reconheceu igualmente um Estado árabe palestino, Israel consolidou o controle coercitivo sobre todo o território e o domínio discriminatório sobre seus quase sete milhões de habitantes palestinos (que constituem metade da população governada por Israel). O reconhecimento de Israel como um Estado pelos Estados membros da ONU teve o efeito constitutivo de criar um Estado judeu israelense que desfruta dos privilégios da soberania e submete os direitos individuais e a libertação coletiva dos palestinos ao veto israelense de fato.

Se o direito internacional estendesse formalmente os direitos à soberania e à autodefesa coletiva do povo palestino, então a violência genocida e as violações de direitos em larga escala nos territórios palestinos ocupados poderiam ser apresentadas como base corretiva para anular a recusa do Conselho de Segurança da ONU em admitir a Palestina como um soberano reconhecido nas Nações Unidas. É claro que um Estado palestino foi reconhecido por mais de três quartos de todos os estados-membros da ONU (146 de 193), mas o não reconhecimento por um subconjunto crítico de estados poderosos (com poder de veto no Conselho de Segurança, como os EUA) negou à Palestina a proteção total da Carta da ONU. A atual campanha de Israel contra o Líbano demonstra que essas proteções não são suficientes para evitar ataques ilegais e desproporcionais quando a licença geopolítica está disponível. Porém, mesmo com o apoio dos EUA, Israel tem menos condições de definir, a seu exclusivo critério, os termos de sua conduta no território libanês.

Até mesmo territórios sem direito internacionalmente reconhecido à autodeterminação, como Kosovo, se beneficiaram dos direitos de proteção e da alteração unilateral das fronteiras territoriais, embora no contexto de circunstâncias geopolíticas propícias. A Palestina é um caso único: um povo com um direito internacionalmente reconhecido à autodeterminação que enfrenta um genocídio transmitido ao vivo. Décadas de violações dos direitos de jus cogens dos palestinos, agravadas por políticas radicalmente aceleradas de limpeza étnica, deveriam proporcionar aos palestinos a proteção crítica de jure de que o próprio Israel desfruta, mas que está empenhado em negar a eles: a soberania.

Diala Shamas

Quando se trata de direitos, a Palestina tem sido frequentemente descrita como uma “exceção”. No entanto, o ano passado mostrou os limites dessa estrutura. Em vez de funcionar como uma mera anomalia, que pode ser deixada de lado, a Palestina se tornou o lugar onde as instituições - inclusive o direito- se expõem, se desfazem ou se reconfiguram.

Em novembro de 2023, a organização para a qual trabalho, o Center for Constitutional Rights, entrou com uma ação no tribunal federal dos EUA em nome dos autores palestinos, processando o presidente Biden e outras autoridades dos EUA por violação do dever de prevenir e cumplicidade no genocídio de Israel. Durante uma audiência de cinco horas, os autores deram um testemunho convincente e devastador sobre os inúmeros danos que eles e suas famílias sofreram. Um dos reclamantes chegou a telefonar de Gaza, talvez a primeira vez na história dos tribunais federais que uma testemunha testemunhou diretamente desde um genocídio em andamento. Eles pediram ao tribunal que ordenasse ao governo que parasse de enviar armas e de ajudar o ataque de Israel a Gaza. O juiz ficou visivelmente emocionado.

Mas a decisão não demorou a ser tomada: embora o juiz tenha concluído que as provas eram “incontestáveis”, ele citou a doutrina da questão política como um impedimento para ordenar qualquer medida. Sua decisão quase se desculpou pela impotência do judiciário, ao mesmo tempo em que “implorou” aos poderes políticos que agissem. Em essência, ele aceitou o argumento do governo de que, mesmo que eles tivessem cometido genocídio, não seria da competência do tribunal prendê-los. Na apelação, um painel de três juízes manteve a decisão.

Vale a pena questionar a surpreendente abdicação da responsabilidade judicial. À medida que surgem notícias de que Blinken e vários funcionários mentiram sobre o bloqueio israelense de entregas de alimentos e remédios para continuar enviando armas para Israel, à medida que as universidades reescrevem suas diretrizes de discurso e conduta, instruindo o corpo docente a não falar sobre sionismo ou mencionar questões de relações exteriores sem tocar em “ambos lados”, estamos testemunhando instituições se contorcendo ou se auto-imolando em vez de proteger a vida palestina. O governo Biden está disposto a sacrificar seus próprios valores proclamados e os freios e contrapesos, bem como as instituições internacionais que alegou proteger, a serviço de um projeto genocida.

O que há na Palestina, como perguntou recentemente o Dr. Ghassan Abu Sitta, que leva instituições, tribunais e Estados a abrir mão de seus próprios interesses? Como esse genocídio continua a remodelar nossas instituições de forma fundamental e aterrorizante - já que o questionamento sobre o número de mortes de palestinos em Gaza deu lugar a nem mesmo mencionar as mortes no Líbano- responder a essa pergunta não poderia ser mais urgente. Seja pelo precedente que está sendo estabelecido pela violação arbitrária do direito internacional, pelos tipos de guerra e armamento ou pelo número de mortos que estão sendo normalizados, ou pelo nível de repressão interna que está sendo realizado nos campi universitários, o que estamos vendo não é o excepcionalismo palestino. É a construção de um mundo novo e aterrorizante.

Maha Abdallah

O direito internacional reconhece o direito do povo palestino à autodeterminação como parte de um compromisso mais amplo com a igualdade, a universalidade e a descolonização. Esse direito permite que os povos determinem livremente sua soberania e status político sem interferência estrangeira, um princípio consolidado após a Segunda Guerra Mundial na Carta da ONU. O direito palestino foi reafirmado ao longo das décadas por vários órgãos internacionais, incluindo a Corte Internacional de Justiça (CIJ), o Conselho de Segurança da ONU, a Assembleia Geral e o Conselho de Direitos Humanos. Em 1974, a resolução 3236 (XXIX) da Assembleia Geral da ONU reafirmou o direito inalienável do povo palestino à autodeterminação, à independência nacional e à soberania, e o direito dos palestinos de retornar a seus lares e propriedades como um componente essencial da realização da autodeterminação. 

Mais recentemente, em julho de 2024, a CIJ emitiu um Parecer Consultivo reafirmando a ilegalidade da ocupação, segregação e apartheid de Israel e destacando seu papel na perpetuação da negação da autodeterminação palestina. O parecer da Corte é importante não apenas por exigir o fim da ocupação ilegal de Israel “o mais rápido possível”, mas também por deixar claro que os Estados e os agentes privados não devem fornecer ajuda ou assistência para manter a situação ilegal criada por Israel.

Entretanto, há uma clara dissonância entre as afirmações jurídicas internacionais e a realidade atual. Mesmo deixando de lado as questões de implementação, o parecer da CIJ deixa sem resposta várias questões importantes sobre como garantir a realização da autodeterminação do povo palestino como um todo. Por exemplo, o que isso significa para os mais de sete milhões de palestinos deslocados para o exílio e para a diáspora desde a década de 1940, que constituem mais da metade da população total do povo palestino no país e no exílio? Como os palestinos que vivem dentro das fronteiras do que hoje é o Estado israelense, que concede o direito de exercer a autodeterminação somente ao povo judeu, exercerão esse direito? Como os palestinos na sitiada e aniquilada Faixa de Gaza e aqueles colocados à força em enclaves em toda a Cisjordânia, incluindo Jerusalém, deverão exercer esse direito?

Por outro lado, a interpretação da comunidade internacional sobre o direito palestino à autodeterminação tem sido amplamente Estado-cêntrica, centrada em uma solução ilusória de Estado que durou mais de três décadas, levando ao enraizamento da anexação e da dominação até o ponto de sua rápida eliminação, como temos visto desde outubro de 2023. A realidade que o projeto sionista-israelense impõe ao povo palestino é de fragmentação, isolamento, subjugação e extermínio, agravada pelo apoio político e financeiro da comunidade internacional a Israel, que o protege da responsabilização. Essa realidade não corresponde, na prática, à realização do direito à autodeterminação. Pelo contrário, ela alimenta o processo de destruição da população palestina, em parte ou no todo, independentemente de sua localização geográfica ou status legal.

Além disso, as contradições inerentes à aplicação do direito internacional são exacerbadas por aqueles que controlam sua aplicação: Estados que, por sua vez, representam os erros históricos do colonialismo, do imperialismo, da exploração e da opressão. O Conselho de Segurança da ONU é um claro exemplo. Enquanto isso, os instrumentos do direito internacional falharam não apenas em concretizar os direitos básicos dos palestinos e proteger os princípios fundamentais de humanidade e dignidade, mas também em prevenir e impedir crimes contra a humanidade e atos de genocídio. Os procedimentos do Tribunal Penal Internacional (TPI) sobre a situação na Palestina, especialmente no último ano, exemplificam esse fracasso, como resultado de interferência e influência política.

Até o momento, grande parte da comunidade internacional não conseguiu obrigar os órgãos e mecanismos do direito internacional a reconhecer e a lidar com sua dívida histórica e atual com o povo palestino, ou trabalhou ativamente para obstruir e atrasar esses esforços. No entanto, os palestinos continuam a invocar o direito internacional e as normas de direitos humanos. Isso não acontece porque eles são ingênuos em acreditar que mesmo um direito internacional reformado e revitalizado libertaria a Palestina (ou outros povos). Em vez disso, é porque os palestinos, como muitos outros em todo o mundo, se recusam a aceitar a “lei da selva” à qual as potências coloniais, imperialistas e capitalistas recorrem quando a lei e a ordem não se adequam mais às suas maliciosas buscas geopolíticas e econômicas.

Shahd Hammouri

Quando se fala de libertação palestina, há palavras-chave que não são negociáveis: resistência, reparações e retorno. No entanto, o direito internacional continua a lançar dúvidas sobre o significado dessas palavras. A fonte subjacente dessa dúvida é a política do direito internacional, aliada a uma cegueira duradoura para suas próprias conotações coloniais.

Tomemos, por exemplo, a noção de paz e segurança internacionais. Os EUA e seus aliados adotam uma leitura fragmentada e reducionista dessa noção, segundo a qual qualquer pessoa que se oponha às “democracias” ocidentais é necessariamente uma ameaça à paz e à segurança internacionais. Nesse contexto, a palavra democracia funciona como um tropo colonial: somos “democráticos”, portanto, somos mais civilizados do que vocês e merecemos dominá-los física e economicamente. Ao adotar essa concepção restrita de paz e segurança internacionais, o direito internacional pode ser usado para afirmar as relações coloniais contemporâneas. O “direito de autodefesa” de Israel, por exemplo, é interpretado sem levar em conta sua condição de ocupante ilegal, seu longo histórico de graves violações do direito internacional e sua intenção expressa de anexar terras.

Por outro lado, nas décadas de 1950 e 1960, os Estados do Sul adotaram uma interpretação diferente da noção de “paz e segurança internacionais”. Quando lemos as resoluções desse período, encontramos referências constantes ao fim da colonização, à autodeterminação, à igualdade e aos direitos econômicos como pré-condições para a paz e a segurança internacionais. Sejamos realistas, o melhor caminho para a paz e a segurança internacionais é aquele guiado por uma bússola que afirma a agência dos mais vulneráveis. Então, aqui, como em qualquer outro lugar, o direito internacional deve ser interpretado à luz das políticas que o criam e implementam.

Seguindo essa bússola, fica claro que o direito de resistência dos povos palestino e libanês tem precedência sobre interpretações restritas da doutrina de autodefesa e interpretações securitárias do direito internacional. As reparações assumem um significado que implica redistribuição econômica. O direito de retorno é claramente afirmado como o primeiro passo para a justiça transicional. As noções de assimetria, coerção econômica, dominação, expansionismo e exploração devem se tornar uma parte central do vocabulário do direito internacional. As corporações, como os principais agentes do neocolonialismo, devem ser reconhecidas como pessoas jurídicas internacionais com direitos limitados e obrigações.

Nesses dias de derramamento de sangue, corpos espalhados e cheiro de morte, a violência das relações de poder sustentadas por leituras fragmentadas, estreitas e descontextualizadas do direito internacional é exposta. Se quisermos que esse conjunto de leis permaneça relevante, devemos adotar uma abordagem do direito internacional que preserve, em vez de perverter, os princípios fundamentais de nossa humanidade comum.


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